A medicina é uma das profissões mais nobres e de maior responsabilidade. A confiança que depositamos em um médico, especialmente em um especialista, é quase que absoluta. Contudo, no intrincado campo do direito, essa confiança se traduz em um conjunto de deveres e obrigações, onde a técnica e a legalidade caminham lado a lado. Um dos pontos mais cruciais e frequentemente mal compreendidos nessa interseção é o papel do RQE – Registro de Qualificação de Especialista.
Muitos profissionais, mesmo após anos de prática e aperfeiçoamento, desconhecem a gravidade de atuar como especialista sem esse registro. O que a princípio pode parecer uma mera burocracia, transforma-se rapidamente em um fator determinante em um processo judicial. Neste artigo, desvendaremos por que o RQE é mais do que um título, mas sim um escudo jurídico indispensável que pode ser a diferença entre o sucesso profissional e a acusação de imperícia.
O Cenário de Risco: A Armadilha da Atuação sem o RQE
Imagine o seguinte cenário (hipotético, mas baseado em uma realidade jurídica):
Dr. Carlos é um cirurgião plástico extremamente talentoso. Formado em medicina há 15 anos, ele aprimorou suas habilidades com cursos, congressos internacionais e uma vasta experiência em procedimentos estéticos. Embora tenha a expertise, nunca formalizou sua especialidade junto ao Conselho Federal de Medicina (CFM) para obter seu RQE. Em seu consultório, atende centenas de clientes satisfeitos, mas em um procedimento de rotina, algo dá errado. O paciente desenvolve uma complicação e decide processar o Dr. Carlos por erro médico. Durante o processo, a defesa do médico argumenta a ausência de sua imperícia técnica, apontando para a excelência de sua prática. No entanto, o advogado do paciente apresenta um argumento devastador: “O Dr. Carlos se apresentou ao mercado como especialista em cirurgia plástica, mas não possuía o RQE. Ou seja, legalmente, ele não estava habilitado para exercer a especialidade, configurando, no mínimo, uma presunção de imperícia.”
A história do Dr. Carlos ilustra a linha tênue que separa a competência técnica da qualificação jurídica. O fato de um profissional ser excelente em sua área não o isenta das exigências legais e éticas da profissão.
O Que é o RQE e Por Que Ele é Tão Importante?
O Registro de Qualificação de Especialista (RQE) é um registro obrigatório para médicos que se apresentam como especialistas em qualquer uma das áreas reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina. Ele serve como uma validação pública e legal de que o profissional concluiu uma residência médica ou passou em uma prova de título, qualificando-se para atuar em uma área específica.
O RQE não é um luxo, mas uma necessidade imposta por resoluções do CFM. O Art. 115 do Código de Ética Médica é claro:
“É vedado ao médico anunciar títulos científicos que não possa comprovar e especialidade ou área de atuação para a qual não esteja qualificado e registrado no Conselho Regional de Medicina.”
Em outras palavras, ao se apresentar como especialista sem o RQE, o médico não apenas comete uma infração ética, mas também se coloca em uma posição de vulnerabilidade jurídica extrema.
A Relação Direta entre RQE, Imperícia e o Dever de Cuidado
No direito, a responsabilidade civil do médico pode ser analisada sob a ótica da culpa, que pode se manifestar em três formas: imprudência, negligência e imperícia.
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Imprudência: Age por imprudência o profissional que, mesmo ciente do risco, toma uma decisão precipitada que causa dano.
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Negligência: Caracteriza-se pela omissão. O profissional deixa de fazer algo que deveria ser feito e que resulta em prejuízo ao paciente.
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Imperícia: É a falta de aptidão ou conhecimento técnico para exercer determinada atividade.
É aqui que a ausência do RQE se torna uma prova crucial. A tese da imperícia pode ser construída com o argumento de que o médico não possuía a habilitação legal para realizar um procedimento de especialista. A lógica é simples: se a lei exige um registro para qualificar um profissional, a ausência desse registro sugere a falta de preparo formal e legal, independentemente da experiência prática do profissional. A jurisprudência brasileira tem fortalecido esse entendimento, com tribunais em diferentes regiões do país entendendo que a ausência de RQE pode ser um fator agravante, ou até mesmo o cerne, de uma condenação por erro médico.
Casos Reais e a Jurisprudência Brasileira (Anonimizados)
Para ilustrar o impacto dessa questão, vejamos como os tribunais têm se posicionado:
Caso 1: Cirurgia Plástica. Um médico generalista realizou uma cirurgia plástica sem possuir o RQE na área. O resultado foi desfavorável, e o paciente ajuizou uma ação. O juiz, em sua sentença, não se limitou a analisar a técnica do procedimento, mas também a qualificou a atuação do profissional como “ato de imperícia presumida”, dada a falta de registro formal para a especialidade. A condenação por danos foi fundamentada não apenas no resultado adverso, mas na própria imprudência do médico em se arriscar a atuar em uma área para a qual não estava habilitado perante o CFM.
Caso 2: Cardiologia. Uma clínica de cardiologia foi processada após uma complicação em um procedimento. A perícia técnica não encontrou falhas na conduta do cardiologista. No entanto, o advogado do paciente descobriu que a clínica divulgava serviços de cardiologia de alta complexidade, mas o profissional que atendeu o paciente não possuía o RQE. A clínica foi condenada por publicidade enganosa e por permitir que um profissional sem a devida qualificação realizasse procedimentos que exigiam a especialidade.
Esses exemplos (hipotéticos, mas com base em decisões judiciais reais) demonstram que a ausência do RQE não é um detalhe, mas um risco latente que pode comprometer a defesa em um processo e a credibilidade do profissional.
O Guia Prático: Como o Médico e a Clínica Podem se Proteger
Para o médico, a solução é clara: busque e formalize seu RQE. Invista em sua qualificação, seja por meio da residência médica ou da prova de título, e garanta que o registro esteja ativo em seu CRM e visível em suas redes sociais, site e cartões de visita.
Para o Gestor de Clínicas e Hospitais, a responsabilidade é ainda maior. Contratar ou permitir que profissionais atuem em especialidades sem o RQE pode sujeitar a instituição a ações judiciais. A due diligence jurídica na contratação de profissionais é essencial. Verifique a qualificação, o histórico e, sobretudo, a comprovação formal das especialidades.
O RQE não é uma mera formalidade. Ele é a evidência de que o profissional dedicou anos de estudo e treinamento para dominar uma área específica. Ignorar sua importância é abrir uma porta para o risco jurídico e para o questionamento da competência profissional.
Conclusão: A Segurança Jurídica Começa pela Conformidade
Em um mercado cada vez mais competitivo e com pacientes mais conscientes de seus direitos, a conformidade jurídica é a melhor estratégia de proteção para o profissional e para a instituição de saúde. O RQE é o selo de qualidade que a lei e a sociedade esperam de um especialista.
Se você é médico e atua como especialista sem o devido registro, ou se você é gestor de uma clínica e tem dúvidas sobre a qualificação da sua equipe, a hora de agir é agora. O risco de um processo por imperícia é real, e a melhor defesa é a prevenção.
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Este conteúdo tem finalidade exclusivamente informativa e não constitui aconselhamento jurídico. Para análise do seu caso específico, entre em contato com um advogado especializado.
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